19.9.09

ESCRITOR DE NISA: Pequena Evocação de Cruz Malpique

Este fim-de-semana passei-o, em grande parte, na companhia de Cruz Malpique, lendo a obra «O Homem, Centro do Mundo», um dos três seus livros que tenho aqui comigo e que periodicamente releio.
Os outros dois são «Higiene Intelectual e Moral do Estudante» e «Ensaio sobre o Homem de Ciência», todos livros escritos na década de 30 do século passado.
Recordo que o primeiro livro que dele li foi «Higiene Intelectual e Moral do Estudante», espécie de manual de orientação juvenil, elaborado no desejo de guiar a Mocidade de então para ideais sãos, elevados, numa fase em que os idealismos podem atrair as suas mentes, ao mesmo tempo que outras solicitações mais rasteiras, mas sedutoras, as podem vir a desencaminhar.
Comprei-o numa barraca livreira que existia ali à entrada do antigo Parque Mayer, em que se vendiam livros, restos de edições, julgo que a vinte e cinco tostões e a cinco escudos cada, montantes modestos, acessíveis, na minha adolescência, cerca de um quarto a metade do preço de um 2º balcão, para uma matinée, ali ao lado, no imponente S. Jorge dos grandes filmes em écran gigante, no final da década de 60, início da de 70, em plena primavera marcelista, então deveras esperançosa.
Lembro-me que o homem que lá se encontrava anunciava o preço dos livros, em voz alta, terminando sempre com uma frase típica, para sublinhar a oportunidade da aquisição : «… Não paga o papel !».
Este autor, Cruz Malpique, então para mim completamente desconhecido, era Professor de Filosofia, na altura, já do Liceu Alexandre Herculano, no Porto, depois de ter passado pelos de Gil Vicente e de Pedro Nunes, em Lisboa e pelos Liceus de Faro, Angra do Heroísmo e Salvador Correia de Sá, em Luanda, tendo chegado deste último a ser seu Reitor.
Escreveu bastante Cruz Malpique, mas hoje nenhum dos seus livros se encontra disponível no Mercado, apesar do interesse das matérias que neles tratava, sempre de forma elevada, altiva, exigente com o leitor, puxando por ele, apelando ao que de mais nobre ele possa encerrar dentro de si, para o motivar a qualquer actividade útil, para si e para a colectividade em que vive.
Definia-se como um escritor de forte personalidade humanística, crente na boa índole humana, desde que oportunamente suscitada com exemplos adequados e depois convenientemente orientada e exercitada.
Havendo regressado a Portugal em 1947, radicou-se no Porto, aí continuando a leccionar até 1984, vindo a morrer, com 90 anos, nesta mesma cidade, em 1992, longe da sua terra natal, Nisa, que o soube honrar, ainda em vida, em 1987, atribuindo-lhe a Medalha de Mérito Municipal e promovendo uma sessão de evocação da sua vida e obra em 1993, com a presença de suas duas filhas.
No Liceu Alexandre Herculano, a que doou a sua biblioteca pessoal, existe uma sala com o seu nome, como reconhecimento do seu largo e profícuo desempenho como Professor de Filosofia ali exercido.
Na fosse a existência de um blogue com o nome do Concelho de Nisa e nem uma pequena nota hoje existiria da sua passagem pela Terra, apesar do vasto labor nela produzido, em significativa obra literária deixada, com mais de 200 títulos publicados, infelizmente nenhum deles, como referi, actualmente no Mercado.
Em contrapartida, não faltam, neste aparentemente próspero Mercado, porque tão altamente produtivo, toneladas de publicações, na maior parte, historietas da mais vulgar banalidade, consumidas por públicos ávidos de leitura, mas, surpreendentemente, pouco escrupulosos nas suas escolhas.

Liceu Alexandre Herculano (Porto)
Nenhum editor se lembrou ainda de repescar do esquecimento este excelso e afinal prolífico autor, além de nobre cidadão, dedicado à causa da participação democrática esclarecida.
Por ele, na minha adolescência, conheci muitos outros autores nacionais e estrangeiros, abundantemente citados em qualquer das suas obras, por vezes com extensas citações e comentários, para elucidação dos seus pontos de vista.
Dada a sua vasta formação intelectual, licenciado em Direito e em Letras, era largo o espectro das citações, nas letras pátrias, Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, Vieira, Bernardes, Herculano, Garrett, Antero, Eça, O. Martins, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Egas Moniz, dominavam as suas referências; nas outras, desde os pré-Socráticos, aos clássicos greco-latinos, como Sócrates, Platão, Diógenes, Ésquilo, Sófocles, Pitágoras, Arquimedes, a Cícero, Virgílio, Marcial, Séneca, aos medievos Santo Agostinho, Tomás de Aquino, aos renascentistas Petrarca, Dante, Bocaccio, Erasmo, Da Vinci, Kepler, Galileu, aos modernos Newton, Leibniz, Montaigne, Descartes, Pascal, aos romancistas Stendhal, Hugo, Balzac, Zola, aos enciclopedistas franceses D’Alembert, Diderot, Voltaire, Rosseau, aos escritores ingleses Shakespeare, Defoe, Dickens, aos alemães Gothe, Schiller, Mann, com especial atenção para os filósofos, Kant e Nietzsche, aos espanhóis Cervantes, Ortega y Gasset, Maranon, Unamuno, toda uma plêiade de pensadores que fizeram avançar a Humanidade, achavam lugar destacado nas suas obras de profunda reflexão, traço típico do grande escritor humanista que Cruz Malpique foi.
Como se explica que certos nomes tão ilustres como este permaneçam praticamente desconhecidos da esmagadora maioria do povo português?
Que fazemos para os divulgar entre os nossos distraídos compatriotas?
Aqui deixo estas toscas notas, na expectativa de que outros as multipliquem com mais elementos relativos à vida e obra deste insigne português, em risco de não se libertar da lei da morte, segundo o famoso critério de Camões, apesar das muitas «obras valerosas» que foi capaz de nos legar.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2009
António Viriato